Erre duro

Eram assim as faxinas das quartas-feiras. Das de olhar cada frestinha. Isso desde o tempo em que Melissa morava com a mãe em Olinda. Além dos  macetes do varre, aspira, passa pano, ela obedece até hoje ao: “Não se gasta sábado em limpeza, Mel. Acorde às 4h30 se precisar, limpe até dar vontade de lamber o chão, mas no meio da semana. Sábado é pra cerveja, cabelo e unha”. Melissa de avental, rabo de cavalo  e cara inchada de sono, como a mãe, catucava tudo que é buraquinho nos armários, nas prateleiras, nos tacos de madeira de todo e qualquer apartamento que morou. Os atuais, tão menores, tão  diferentes da casa da infância, até lhe ajudavam na redução de tempo da tarefa, mas era como se, com os minutos sobrando, ela ficasse em dívida com dona Quitéria. Daí que quanto menor a área, maior a exigência. 

Nessa de olhar tudo, nessa de casa e de rua, de calor e de luz clara de sol, era cada grito que davam ela e a mãe. A casa ficava limpa e santa. Nossa senhora, Virgem Maria, meu Deus do céu, Jesus. Porque quem mexe em buraco, às vezes não quer, mas destampa, né? E vinha barata, aqueles ovinhos de mosca, cocô de besouro, aranha, até um rato bebê morto precisaram administrar uma vez. De lascar. No AP recém-construído, chegava a dar uma frustraçãozinha. O máximo que se puxava de uma fresta era um resto de gesso de construção. Por isso a curiosidade, o empenho dela agora, deitada embaixo do móvel da TV,  com a lanterna do celular acesa,  na luta pra entender essa rebarba de papel, bem na quina do rodapé.

Passava das 7h, horário em que já deveria estar no ônibus. E ela lá, na pinça de sobrancelha, puxando com o maior cuidado do mundo. Precisou de um pouquinho mais de um centímetro pra identificar, era dinheiro. Dinheiro gringo. Ela ligou pra Guilherme, chefe de turno na gráfica, e já foi metendo uma tosse no meio do bom dia, e um  mais ou menos, pro tá tudo bem? que veio de lá. Ganhou a folga, porque tosses e espirros são perigosos pra turma do acabamento e, depois, eles já estavam há 54 dias sem acidentes.

Ela conhecia tanto Guilherme, que conseguiu ver, de casa, ele dando um gole no café, fazendo que não com a cabeça, e digitando o ramal de Zé Celso –  único que consegue dobrar o turno da guilhotina sem mudar o placar que, por incompetência da turma do veniz, não alcançam desde o ano passado. Conhecia também a rotina dos vizinhos, de quem chega a advinhar a escolha da roupa, só pelo movimento do outro lado da parede. E pensando agora, talvez dê pra dizer que a vida de Melissa é chata, talvez por isso o milindre com a faxina, talvez ainda lamber o chão e assistir à vida do povo, feito novela, seja a maior ousadia a que se permitia desde que saiu de casa. Pois bem, ela sabia que a essa hora, os vizinhos já tinham saído pra trabalhar, de jeans e camisa de botão, certeza. Sabia que acordavam especialmente barulhentos na quarta, que o menor lavaria roupa escutando Simone amanhã, também cedo, e que o outro prefere o som um pouquinho mais baixo, bota no 12, amor.  De maneira que dava pra quebrar um teco de nada, destampar um dedo de gesso pra entender o por quê daquela nota. E, quem sabe, se ela tivesse irmãs, diferente de Melissa, não teria razão pra achar a cerveja do sábado um pouquinho menos amarga. 

Melissa nao tinha marreta, martelo, ou nada que servisse – pelo menos pensando assim, de pronto – pra quebrar parede. Mas desde quando gesso é parede? Ela pensou meio feliz, já que conseguiria seguir com a tarefa a que se propôs com o que quer que fosse. Pra um segundo depois, pensar meio triste: era só gesso mesmo que dividia a vida delas da dos vizinhos. Uma camada tão fina e frágil, não é? 

Na cabeça, e só na cabeça mesmo, já que seguia deitada no chão, passou a revisar cada item de cada gaveta dos 30m2 do apartamento. Não eram muitas gavetas, nem muitos itens. Saiu fugida do último endereço e trouxe somente o que teve tempo de colocar no carro de Zé Celso. Foi a partir daquele dia que passou a considerá-lo um amigo, alguém com quem podia contar. Sentiu uma pontada de culpa por fazer, justo ele, dobrar o turno por uma besteira dessas.

Levantou num pulo, já com o telefone na mão e, antes mesmo de desligar a lanterna, apertou o nome de Guilherme na agenda. Disse, sem se preocupar com a incoerência da mensagem, que, do nada, estava melhor, que não precisava ligar pra ninguém não, chego em meia horinha. E saiu de casa, ainda com o cabelo pra cima. Só se deu conta do avental no segundo ponto de ônibus. Espantada com a falta de sentido da cena – ela de chinelo, calça de moletom e flanela no bolso do avental, sem banho, sem óculos, sem maquiagem e com o crachá da gráfica pendurado no pescoço – apertou o botão e desceu na mesma avenida em que morava.

Era também fininha a camada que separava a Melissa de hoje cedo, que tinha planos, ordem para realizar cada um deles, que tinha controle da própria vida, dessa que se arrepiou quando encostou um pedacinho do pé na calçada molhada, sabe-se lá do quê, da Cardel Arco Verde. Antes de seguir descendo a rua, centralizou o corpo nas havaianas de faxina e retomou, um pouquinho pelo menos, a direção dos próximos passos. Vai voltar pra casa, tomar um banho de cinco minutos e chegar apresentável na gráfica. Melhor atrasar mais um hora do que assustar Guilherme. Ela precisa do trabalho e ele confia em pouca gente para operar a guilhotina.

Mesmo que o salário e a vida real tivessem voltado a ser guias, o pedacinho de dinheiro no vão entre o apartamento 81, o dela, e o 82, o dos vizinhos, deu ordem para que Melissa descesse mais uma quadra e entrasse na Precolândia da Cunha Gago atrás de um martelo. Chegaria na gráfica em uma hora e dez. Mas amanhã, almoça em casa. Nem que sobrem vinte minutinhos entre ir e voltar, ela já vai ter ferramenta pra quebrar como se deve uma parede. O da tramontina é R$24,79, senhora. Fez as contas, dava um pouquinho mais de cinco dólares. Vou levar. Débito ou crédito?

Melissa saiu da loja pronunciando com estranhesa as palavras que sobraram. Subiu cinco quadras no mantra: crédito, Tramontina, Preçolândia. Anos de fono e ainda sofria com os Rs duros. Combinou consigo que, para o banho, daria play em quakquer um do dr. Drauzio, só pra ouvir os horíveis, espiros, caregadas que ele solta com tanta naturalidade. Dr. Drauzio, o Rivotril de Melissa. 

Já no térreo do prédio, cruzou o zelador e a notícia. Fala, Melissa. Tá sabendo da conversa do 82? Vão reformar. Quando? Parece que começa amanhã. Mas é o quê? De primeiro foi o mofo na parede da sala. Capaz de manchar o tua. Mas a galera tá com grana, parece que vão trocar piso e tudo. Ainda bem que tu passa o dia fora.

Ela subiu sem segurar o elevador pra moça que chegava com o carrinho de pet. Foi um alívio, uma espaço pra vazar crítica à cena que sempre lhe deixava de herança o Rock da Cachorra do Eduardo Dusek. Do térro até o oitavo: primeiro, galera, grana, primeiro, galera, grana. Pois se a galera já tava cheia da grana e sempre primeiro, sempre antes dela, aquela lá -também vazando pela parede -já tinha dona. E a dona era Melissa.

Começou pelo cantinho em direção à lateral, numa força que sequer imaginou ter no braço. Cada pancada deixava mais clara a arquitetura. O buraco não fazia 81 e 82 encontrarem, era um vão de, no máximo dez centímetros. E, embora essa palavra seja feia, não há nada que se aproxime mais do que dizer que o vão parecia socado de dinheiro. Ela seguiu, mesmo que o telefone gritasse a dúvida de Guilherme: cadê Melissa? Zé Celso também insistiu, conhecia a amiga. Já tinha a visto faltar o trabalho, mas uma única, aquela da carona, e não foi bonito de ver não. Aos toques do celular somava-se agora o latido do Lipe do 91 e o interfone. Era meio dia, horário proibido para grandes barulhos.

O braço cansado de Melissa não desobedecia à ordem de seguir batendo, mas já batia meio descordenado. Tinha chegado até a porta quando o toque da campanhia lhe despertou para a segunda etapa da operação. Subiria a faixa de parede. Sentada. Dinheiro que não acabava mais, foi até o outro lado e, de novo em direção à porta agora já de joelhos. Isso sem parar um único segundo. Ouviu os gritos do zelador? De um Zé Celso que baixou na Cardeal no meio do expediente? Do barulho das sirenes lá fora? Ouviu. Mas a pressa, minha gente, se não é surda, também não é besta. É meu, ela gritava. Meu.

 

Já em pé, gesso caindo pra tudo que é canto, marreta da polícia arrombando a porta na mesma velocidade em que martelo quebrava a parede, perdeu a mão do Tramontina e, na volta de uma ida,  danou o negócio na testa. Com a força do mundo inteiro. Traumatismo craniano. Dizem que pode até ser que volte. Mas Guilherme já abriu processo seletivo. Horível.

Roberta dalbuquerque